Semana passada eu resolvi terminar o meu “sabático” de trabalho no Keykapp.
O Keykapp é um teclado assistivo que eu venho projetando e pesquisando faz uns 5 anos, e depois de juntar uma grana com freelas eu decidi tirar uns meses para fazer um primeiro protótipo e tirar a coisa da cabeça.
Um benefĂcio que eu nĂŁo falei do lance de “externalizar cognição” Ă© que tem coisas que ficam te pentelhando pra vocĂŞ nĂŁo esquecer, e isso tira concentração e consome recursos.
No livro Getting Things Done, o autor fala desse alĂvio que vem quando vocĂŞ pega tudo, absolutamente tudo que tem pra fazer na vida, todas as pendĂŞncias e coisas adiadas, e põe pra fora em um lugar onde o seu cĂ©rebro sabe que vocĂŞ vai ver de novo.
Até você fazer isso, ele fica jogando a peteca pra cima constantemente, com medo de você deixar de cumprir aquele compromisso. E isso cansa, estressa, e diminui sua capacidade de concluir as coisas e tomar boas decisões, o que só faz com que você tome mais tempo para fazer as coisas que faria mais rápido com a mente limpa, o que faz com que mais afazeres atrasados se acumulem na cabeça.
No caso do Keykapp, não era tanto um compromisso como uma obsessão, um negócio que eu sabia que dava pra fazer, que ninguém estava fazendo, e que eu queria muito que existisse. Cada conhecimento novo que eu aprendia eu comparava com o projeto guardado na minha cabeça, pensando “hm, isso aqui dá pra usar no Keykapp”, e ia atualizando e refinando o design.
Mas você não sabe se está só viajando em cima de uma fantasia ou se tem algo real nas mãos até botar pra fora, mexer, manipular, e ver se a realidade bate com as suas expectativas, se as suas premissas faziam sentido mesmo ou não.
Então lá pra julho ou agosto eu terminei um projeto com o meu cliente, até então recorrente, e falei que não ia pegar mais coisas pra fazer por ora.
Fazer um primeiro protótipo foi mais fácil do que eu pensava, em parte graças a eu já vir escolhendo o que estudar e que freelas pegar de acordo com o que seria bom aprender para depois usar no Keykapp.
E, para minha enorme alegria, eu nĂŁo estava viajando na maionese e muito do que eu imaginava se provou de fato válido e Ăştil. O protĂłtipo era lento, mĂnimo, e tinha um monte de coisas faltando, mas o cerne da ideia saiu exatamente como eu pensava.
Tem um esquema nos celulares Android e iOS que permite você usá-los apenas piscando os olhos. Ele tem um foco retangular que vai passando de um botão ou coisa clicável na tela ao outro, parando um pouquinho em cada um, e quando ele chega no que você quer, você pisca e ele clica.
Imagina digitar desse jeito. Ele mostra o teclado qwerty padrĂŁo do celular, e vai passeando de uma tecla para a outra, em ordem: q, w, e, r… Em cada uma ele fica algo tipo um segundo, o que dá na mĂ©dia uns 15 segundos para digitar cada letra. Eu tentei usar isso por um tempo e quase arranquei os cabelos de tĂŁo lento. Essa Ă© a Ăşnica voz que muitas pessoas com vários tipos de condição tĂŞm, e Ă© honestamente ridĂculo que empresas do calibre do Google e da Apple achem que isso Ă© o melhor que dá pra fazer.
Eu testei o mesmo esquema com o Keykapp, e é uma coisa que você tem que ver pra sentir o tamanho da diferença. Eu sou suspeito pra falar, mas sem brincadeira, não tem nem comparação. O Keykapp ganha de lavada.
Obviamente nĂŁo Ă© porque eu sou mais inteligente ou criativo do que todos os engenheiros e designers da Apple e do Google, porque eles nĂŁo estĂŁo todos trabalhando nisso, e duvido que eles realmente pensem que isso Ă© o melhor que dá pra fazer. Acessibilidade Ă© uma camada de tinta que colocam ao final como uma formalidade para atender a regulamentações, nĂŁo algo que Ă© pensado desde o começo e define os fundamentos em cima e em torno dos quais todo o resto Ă© construĂdo.
Se nĂŁo tem pelo menos um bilhĂŁo de potenciais consumidores, Ă© um mercado pequeno demais para empresas desse tamanho. Isso Ă© o que o Eliezer Yudkowsky chama de “equilĂbrios inadequados” no seu livro Inadequate Equilibria. Dá pra fazer melhorias enormes com poucos recursos em problemas negligenciados o suficiente.
Enquanto eu estava desabilitado pela LER, eu queria ter um plano B caso a situação fosse irreversĂvel e eu nĂŁo conseguisse mais usar o computador normalmente. E nessa pesquisa eu fui revendo tudo, descendo camada por camada atĂ© chegar ao interruptor que manda o bit do teclado para o computador, e reimaginei todo o resto para extrair o máximo do que esse um botĂŁo poderia fazer, para entĂŁo generalizar para mais botões a partir de primeiros princĂpios.
Esse medo de ficar incapacitado e me ver obrigado a usar essas coisas medonhas que existem hoje foi o que sustentou essa obsessĂŁo na minha mente por todo esse tempo. Ver a coisa na minha frente funcionando me trouxe um alĂvio que nĂŁo tem como descrever, alĂ©m da realização enorme de ter posto em prática um impulso criativo e feito algo realmente novo.
Agora eu sei que se acontecer alguma coisa com meu corpo que me ponha de volta naquela situação eu tenho para onde correr, e essa segurança não tem preço.
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