Existe um jeito previsível e replicável de deixar uma pessoa instantaneamente mais burra e impulsiva do que a grande maioria dos seres humanos: coloque-a num estado mental de escassez.
De tempo, de dinheiro, de amigos, qualquer tipo de escassez. Não precisa nem haver uma situação de escassez de fato. Só de você fazer a pessoa imaginar uma situação de escassez já faz com que ela perca na média uns 13 pontos de QI, o que é quase um desvio padrão inteiro.
A média de QI é 100 e o desvio padrão é de 15 pontos. Isso quer dizer que se você é uma pessoa normalzinha de tudo (i.e. mais inteligente que 50% da população) e de repente perde 13 pontos de QI, você fica menos inteligente que 80% das pessoas. Num estalar de dedos!
Você também perde uma quantidade enorme do que chamam de “função executiva”, que é a capacidade de controlar impulsos e agir deliberadamente. Você exagera na comida ou bebida, compra coisas que não deve, e sai dando patada em todo mundo e tomando más decisões.
Como faz essa mágica? Olha como é simples:
No livro Escassez , de Sendhil Mullainathan e Eldar Shafir, eles fazem um (entre vários outros) experimento com pessoas separadas aleatoriamente em grupos demográfica e financeiramente idênticos. Para o grupo A eles fazem uma pergunta do tipo “seu carro quebrou e vai ficar 100 reais pra consertar, o que você faz?” e pro outro fazem a pergunta “seu carro quebrou e vai ficar 1000 reais pra consertar, o que você faz?”
A resposta que a pessoa dá é irrelevante. O lance é o valor, que é a única coisa que muda nas duas perguntas. Depois que a pessoa responde, eles aplicam um testezinho de QI.
Para um outro grupo C, eles só aplicam o teste de QI, sem fazer a pergunta antes.
O pessoal que respondeu a pergunta dos 100 reais se sai benzaço. Nenhuma diferença dos que não pensaram na pergunta.
Mas o grupo B, que teve que pensar (por um instantinho!) de onde tiraria 1000 reais imprevistos de repente, tomou uma surra! Uma sugestãozinha de nada e perderam na média os tais 13 pontos de QI.
Que preocupações com falta de dinheiro, de tempo, de contato social, etc. causem estresse, distração e ocupem a cabeça não é nenhuma super descoberta. Mas o tamanho enorme do impacto e o tamanho minúsculo do estímulo necessário me deixou de queixo caído. Os autores também.
O livro é fascinante e importantíssimo, daqueles que “todo mundo deveria ler”. Sério, vai mudar sua vida. Mudou a minha, recentemente.
No post anterior, eu falei sobre como resolvi encerrar o meu “sabático” não remunerado de trabalho no Keykapp.
O que não falei é que eu ainda tinha uns 6 meses de economias e estava pensando em ficar pelo menos mais uns 4 trabalhando no projeto.
Mas mesmo antes de ler o livro eu já vinha notando uns pensamentos de ansiedade aparecendo aqui e ali.
Várias coisas que eu estava estudando para o Keykapp não eram diretamente “marketáveis”, e eu tinha conseguido o cliente anterior (que foi o meu único cliente desde que comecei a freelar) meio que na sorte. Não tinha um portfólio e reputação muito fortes para conseguir novos clientes internacionais que pagassem tão bem.
Será que dois meses são suficientes? Será que eu já não devia ir voltando a estudar coisas populares e facilmente freeláveis tipo React, JavaScript, Gatsby em vez de Rust, Lua, tmux, zshell e neovim?
Aí depois que eu li o livro vi que o problema era bem maior do que eu tinha dimensionado. Mesmo começando a procurar 2 meses antes eu estaria, com o prazo tão apertado e o dinheiro contado, significativamente menos capaz cognitivamente justo no momento em que eu precisaria dar um gás nos estudos, incrementar portfólio, fazer entrevistas e projetinhos de teste, etc. E talvez pela impulsividade adicional e pela proximidade da água na bunda eu aceitasse a primeira oferta e acabasse pegando algo pior do que eu conseguiria no meu estado normal.
E isso tudo é a parte previsível. E se a economia global der uma guinada negativa? E se eu ou alguém da família ficar doente e aparecer de repente uma despesa grande? E se meu computador pifar do nada?
Em vários dos estudos que eles mostram no livro, o evento chave que leva pessoas a entrar numa espiral viciosa de dívidas e atrasos é a combinação de um “susto” com a falta do que eles chamam de “folga”.
A folga é uma reserva líquida que você pode usar numa emergência. Se seus recursos estão todos imobilizados, mesmo que você tenha terreno, casa ou fundo de pensão, a hora que vem o susto você não tem o dinheiro na mão, aí pega um empréstimo no impulso sem considerar direito os juros, aí pagando os juros falta dinheiro pra outra coisa prevista que você esqueceu porque estava mais burro ou pra outro susto que aparece logo depois, aí você pega outro empréstimo pra pagar aquilo, e assim por diante. Sair disso, com as limitações cognitivas envolvidas, é muito mais difícil (eles também quantificam quão difícil, e é muito mesmo).
A mesma coisa serve para o tempo. Mesmo com grana líquida em mãos ou seguro contratado para os sustos mais comuns, se naqueles dois meses der qualquer zica (uma gripe forte de duas semanas, um parente doente, um potencial cliente que sai de férias e para de responder), eu estou no sal.
Então pensei quer saber, eu já fechei um ciclo importante no projeto, não ia conseguir produtizar e comercializar tudo nesses quatro meses mesmo, e já estava nos planos trabalhar remuneradamente mais um tempo, juntar dinheiro e fazer sabático umas quantas outras vezes de qualquer jeito. Então vou proteger ferrenhamente essa folga que eu tenho e começar a fazê-la crescer logo em vez de usá-la até chegar na reserva.
Também não vou entupir a agenda de projetos de clientes. É melhor pegar 20-30h por semana, juntar dinheiro mais devagar, e ter uma margem de tempo para absorver imprevistos, estudar, cuidar da saúde e fazer investimentos do que ficar a uma estimativa errada ou qualquer outro susto de uma espiral de atrasos e noites varadas.
Eu ia dizer “tranquilidade não tem preço”, mas tem sim, já mediram, e é absurdamente maior do que o valor que a gente normalmente dá.
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Eita, me identifiquei e me surpreendi como tema.
Valeu pela recomendação.