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Francis Targanski
Francis Targanski

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Epicuro e o Ruído Estocástico: Probabilidade, Incerteza e Classificadores Bayesianos

Epicuro de Samos introduziu uma perspectiva inovadora ao desafiar o determinismo absoluto de seu tempo. Segundo ele, os átomos, os blocos fundamentais da matéria, não se movem sempre em trajetórias fixas: ocasionalmente sofrem um desvio aleatório (o_ clinâmen_) que quebra a causalidade estrita. Esse momento de “impulso” não previsto nos átomos explicaria, para Epicuro, por que o universo não é rigidamente predeterminado e permitiria o livre-arbítrio humano.

Em termos modernos, a intuição epicurista de uma aleatoriedade intrínseca ao mundo foi em grande parte confirmada pela física quântica. Estudos indicam que partículas subatômicas realmente exibem comportamentos imprevisíveis, e o “clinâmen” de Epicuro ganhou sentido científico. Como observa The Information Philosopher, “a intuição de Epicuro sobre uma aleatoriedade fundamental estava correta”: sua noção de clinâmen acabou sendo compatível com os princípios da física quântica, que introduzem acaso nos movimentos atômicos. Em outras palavras, assim como Epicuro supôs desvios fortuitos na dinâmica atômica, hoje entendemos que efeitos quânticos reais rompem o determinismo clássico, fazendo do comportamento estatístico algo intrínseco ao universo.

Epicuro estava preocupado com a liberdade humana, mas seu conceito abre caminho para refletirmos sobre incerteza em geral. Nas palavras da Stanford Encyclopedia of Philosophy, “indeterminismo” filosófico implica que certos acontecimentos simplesmente ocorrem sem causa linear prévia. Do mesmo modo, a física moderna, por meio do princípio da incerteza de Heisenberg, mostrou que não faz sentido falar de trajetórias definidas para partículas quânticas: há sempre um elemento de acaso no nível fundamental. Essa quebra do determinismo absoluto, seja por Epicuro na Antiguidade, seja pela mecânica quântica hoje, é a base para considerarmos a aleatoriedade como parte da estrutura do nosso mundo.

Epicuro e a Aleatoriedade Atômica

Para Epicuro, o clinâmen (do grego parenklisis) é o sutil desvio vertical nos átomos que determina a liberdade de movimento e, portanto, de decisão. Ele viajou no mesmo terreno dos atomistas Demócrito e Leucipo, mas acrescentou esse elemento de casualidade à sua cosmologia. Segundo Epicuro, se tudo fosse perfeitamente predeterminado pelos movimentos iniciais, não haveria espaço para escolha ou acaso. Por isso, “ocasiona-se um desvio nos átomos a cair por acaso, num ângulo de movimento que ele chama de ‘parenklisis’”, traduzido para o latim por Lucrécio como clinâmen. Assim, ao introduzir aleatoriedade natural, Epicuro forneceu uma explicação filosófica para a imprevisibilidade observável, por exemplo, por que uma pedra pode cair de um jeito levemente diferente do esperado.

Embora formulada em termos antigos, essa ideia ecoa no pensamento probabilístico moderno. É como se Epicuro tivesse antecipado a necessidade de ruído ou variação em sistemas determinísticos, algo que hoje lidamos rotineiramente em ciência de dados. O próprio Epicuro estendeu a noção de acaso ao comportamento humano: “o comportamento dos homens reflete os eventos atômicos. A ocasional incerteza cinética de tais partículas seria extensiva às ações humanas”. Em outras palavras, nossa aleatoriedade de escolhas e resultados teria raízes nos desvios imprevisíveis dos átomos.

Do ponto de vista contemporâneo, essa visão é quase profética. A The Information Philosopher destaca que os físicos modernos confirmaram que “os átomos não ocasionalmente desviam, eles se movem de forma imprevisível sempre que estão em contato próximo com outros átomos ou interagindo com radiação”. Ou seja, mesmo sistemas aparentemente determinísticos (como as propriedades em larga escala de objetos macroscópicos) são, na verdade, apenas estatisticamente previsíveis: cada pequeno átomo está sujeito a flutuações quânticas. Essa imprevisibilidade natural é análoga ao clinâmen de Epicuro.

Ruído Estocástico e Incerteza em Sistemas Computacionais

Na engenharia de software e no aprendizado de máquina, lidamos constantemente com ruído estocástico, análogo moderno ao acaso epicurista. Ruído é toda flutuação aleatória nos dados que impede a extração de padrões claros. Conforme definições em aprendizado de máquina, “ruído refere-se a flutuações aleatórias ou imprevisíveis nos dados que atrapalham a identificação de padrões ou relações alvo”. Esses erros podem vir de medições imprecisas, amostragem falha, influência humana, ou processos tão complexos que não podem ser totalmente modelados. Tal ruído natural nos dados exige métodos probabilísticos para inferir conclusões confiáveis.

Historicamente, software era criado de forma determinística: dado X sempre produz resultado Y previsível. Porém, com o avanço de técnicas de inteligência artificial e algoritmos de aprendizagem de máquina, o design de sistemas tornou-se cada vez mais estocástico. Na visão de alguns especialistas, testemunhamos um “deslocamento fundamental do design de software determinístico para o estocástico”. Isso significa que não mais esperamos saídas exatamente iguais para as mesmas entradas: por exemplo, algoritmos podem empregar aleatoriedade interna (como inicializações aleatórias em redes neurais) ou lidar com dados de entrada incertos.

Esse movimento reflete a complexidade do mundo real: sensores, usuários e ambientes fornecem informações ruidosas ou incompletas, e algoritmos flexíveis precisam tolerar essa incerteza. Assim como Epicuro introduziu aleatoriedade na natureza para explicar fenômenos não determinísticos, na prática de desenvolvedores modernos adotamos intencionalmente o aleatório em algoritmos (por exemplo, geração de números aleatórios, simulações de Monte Carlo, regularização estocástica) para conseguir soluções mais robustas. Em suma, tanto na filosofia epicurista quanto na engenharia atual, reconhece-se que o “acaso faz parte do jogo”: seja para permitir livre-arbítrio, seja para criar sistemas que aprendem e se adaptam a partir de dados imperfeitos.

Classificadores Bayesianos: Probabilidades na Tomada de Decisão

Para lidar formalmente com incerteza e ruído, muitas técnicas de aprendizado usam a probabilidade como ferramenta principal. Em especial, classificadores bayesianos aplicam o Teorema de Bayes para estimar quantitativamente a plausibilidade de diferentes hipóteses (classes) diante de evidências. Em termos simples, esses algoritmos calculam qual a probabilidade de que um objeto (um email, uma imagem, etc.) pertença a cada possível categoria, dadas suas características observadas.

Por exemplo, o clássico Naive Bayes, que é descrito como “um algoritmo de aprendizado de máquina supervisionado usado para tarefas de classificação […] que utiliza princípios de probabilidade para realizar tarefas de classificação”, ele aplica o Teorema de Bayes para computar probabilidades posteriores baseadas em probabilidades anteriores (priors) e na probabilidade dos dados sob cada classe. O procedimento geral é: dado um conjunto de características X, o classificador calcula a probabilidade posterior para cada classe possível, e escolhe a que tiver maior valor. Essa abordagem é inerentemente probabilística e explícita na incerteza, é ideal em cenários onde os dados são ruidosos ou incompletos.

Em essência, a inferência Bayesiana é “uma técnica de aprendizado que usa probabilidades para definir e raciocinar sobre nossas crenças” e nos permite atualizar essas crenças quando chegam novas evidências. Na prática, isso significa que nossas incertezas iniciais (conhecimentos prévios) são combinadas com a informação dos dados para gerar novas distribuições de probabilidade (conhecimentos posteriores). Se antes da observação nós tínhamos uma probabilidade prévia de cada evento, após coletar dados obtemos a probabilidade a posteriori, refletindo melhor nossa confiança diante da evidência. Essa interpretação se alinha com a definição de Epicuro de que certos eventos ocorrem “por acaso”: o método bayesiano quantifica justamente quão provável consideramos cada causa, aceitando que não possuímos certeza.

Os classificadores bayesianos mais simples assumem, ainda, condições de independência entre características: o famoso Naive Bayes supõe que o valor de um atributo dado a classe não depende dos outros atributos. Essa suposição “ingênua” simplifica enormemente os cálculos probabilísticos e torna o algoritmo escalável e eficiente. Mesmo com esse modelo simplificado, os resultados costumam ser satisfatórios em muitos problemas práticos. Uma grande vantagem é que o Naive Bayes requer muito poucos dados de treinamento para estimar seus parâmetros probabilísticos, o que o torna apropriado como solução inicial em projetos de classificação. Em contraste, métodos determinísticos ou não probabilísticos (como árvores de decisão complexas) precisariam de muito mais dados limpos para atingir desempenho semelhante.

Em suma, os classificadores bayesianos concretizam na computação a ideia de gerenciar incertezas de forma quantitativa, cada resultado vem acompanhado de um valor de probabilidade que indica nosso grau de confiança. Essa atitude epistemológica tem paralelo filosófico: assim como Epicuro introduziu o acaso no mundo físico, a inferência bayesiana introduz “acaso” no processo de tomada de decisão computacional. Ela reconhece que nosso conhecimento nunca é completo e, ao invés de descartar ou ignorar incertezas, as modela explicitamente. A probabilidade bayesiana é uma medida relativa à nossa crença, ela não é uma propriedade intrínseca ao objeto, mas depende do que já sabemos e do que observamos. Essa ênfase nas crenças atualizáveis se assemelha à visão de que, diante do desconhecido, só nos resta mensurar graus de possibilidade, assim como Epicuro nos ensinou a viver em meio ao inesperado.

Conclusão

A jornada de Epicuro, do clinâmen atômico ao campo moderno dos classificadores bayesianos, revela como antigas reflexões sobre acaso ressoam nos desafios atuais do desenvolvimento de software. Tanto no mundo físico quanto no digital, é impossível escapar completamente da incerteza: Epicuro, ao defender os desvios aleatórios dos átomos, antecipou o reconhecimento de que nem todo resultado é rigorosamente pré-determinado. Hoje, desenvolvedores enfrentam dados ruidosos e processos estocásticos e, em vez de lutar para eliminá-los, recorrem à estatística e à probabilidade para compreendê-los.

Em particular, algoritmos bayesianos incorporam diretamente esses conceitos filosóficos ao lidar com incertezas inerentes. Usando o Teorema de Bayes, sistemas de classificação não apenas escolhem uma resposta, mas associam a ela um grau de confiança probabilístico, espelhando a atitude de quem aceita o acaso como parte da realidade. Sob essa luz, a moral epícurea do equilíbrio (ataraxia) se traduz em computação como o equilíbrio entre determinismo e probabilidade. Aceitar o ruído estocástico, ou seja, aceitar que às vezes algo pode simplesmente acontecer, é tão crucial para manter sistemas robustos quanto era para os antigos manterem a paz de espírito.

Dessa forma, a síntese entre filosofia clássica e desenvolvimento de software nos lembra que toda aplicação prática repousa em fundações conceituais profundas. O que Epicuro começou a refletir sobre partículas elementares e acaso, hoje reaparece como problema de gestão de incerteza em aprendizado de máquina e inteligência artificial. Assim, inspirados por essa conexão, desenvolvedores e pensadores podem usar tanto a razão científica quanto lições filosóficas para criar programas mais flexíveis e confiáveis. Afinal, ao reconhecer a inevitabilidade do acaso, tanto o sábio do Helião quanto o engenheiro de software alcançam um ponto em comum: compreender o mundo (e o código) não como um livro completamente aberto, mas como uma sinfonia onde, em cada momento, há espaço para o imprevisto, e para a surpresa criativa que ele pode trazer.

Referências

  • Bishop, C. M. Pattern Recognition and Machine Learning. Springer (2006).
  • DataCamp. Naive Bayes Algorithm: A Practical Guide with Python. DataCamp (2024).
  • IBM. What is Naive Bayes? IBM Machine Learning Explainers (2023).
  • Google Cloud. Bayesian Methods and Model Uncertainty in Machine Learning. Google Cloud AI Blog (2024).
  • Stanford Encyclopedia of Philosophy. Epicurus. Stanford University (2023).
  • Lucrécio. De Rerum Natura. Tradução e comentários de José Américo Motta Pessanha. Ed. Martins Fontes (2010).
  • Long, A. A., Sedley, D. N. The Hellenistic Philosophers. Vol. 1. Cambridge University Press (1987).
  • Information Philosopher. Epicurus’ Swerve: A Foreshadow of Quantum Indeterminacy. The Information Philosopher (2022).
  • Hastie, T., Tibshirani, R., Friedman, J. The Elements of Statistical Learning: Data Mining, Inference, and Prediction. Springer (2009).
  • Russell, S., Norvig, P. Artificial Intelligence: A Modern Approach. 4ª edição, Pearson (2021).
  • MacKay, D. J. C. Information Theory, Inference, and Learning Algorithms. Cambridge University Press (2003).
  • Murphy, K. P. Machine Learning: A Probabilistic Perspective. MIT Press (2012).
  • OpenAI. Inference and Uncertainty: Design Principles of Language Models. OpenAI Research (2024).

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