A inteligência artificial (IA) tornou-se onipresente no desenvolvimento de software moderno, oferecendo recursos de autocompletar código e assistentes (como GitHub Copilot, ChatGPT, entre outros) que aceleram tarefas repetitivas. Essas ferramentas vêm transformando práticas como code review, pair programming e geração automática de documentação. Porém, essa evolução levanta questões sobre a cultura de engenharia: até que ponto o diálogo humano e a transmissão de conhecimento colaborativo estão sendo substituídos por interações com a máquina? De um lado, a IA promete aumentar a produtividade e reduzir erros triviais; de outro, existe o risco de “empobrecimento do aprendizado coletivo” se desenvolvedores passarem a aceitar sugestões sem questionar.
Neste artigo analiso como a IA impacta práticas-chave do desenvolvimento (revisão de código, programação em par, documentação e onboarding), discuto os perigos de se perder a troca de ideias entre desenvolvedores e relaciono esses temas com o método socrático, um modelo filosófico de diálogo crítico que pode inspirar times modernos a manterem a curiosidade e o senso crítico em meio à automação.
IA nas práticas de desenvolvimento
Revisão de código com IA
A revisão de código tradicional é muito mais que caçar bugs: é um espaço onde revisores compartilham conhecimento sobre padrões e boas práticas do projeto. Comentários de colegas ajudam a manter a consistência do código e a transmitir conhecimento implícito, como convenções de estilo ou razões históricas de implementação. A IA entra nesse cenário oferecendo code review automatizado: ferramentas treinadas em grandes bases de código que podem sinalizar erros sintáticos, vazamentos de memória ou violações de estilo. Plataformas como SonarQube ou DeepCode usam machine learning para detectar “code smells”, vulnerabilidades e antipadrões que humanos muitas vezes deixam passar. Segundo Alex Williams, a IA nessa tarefa padroniza a análise de qualidade do código, aplicando regras uniformes independentemente do revisor humano. Isso melhora a consistência em grandes projetos, liberando desenvolvedores de tarefas maçantes, como corrigir imports não utilizados ou verificar conformidade de estilo.
No entanto, estudos de usuário indicam que o papel humano continua crítico. O GitHub entrevistou desenvolvedores e constatou três pontos-chave: eles revisavam diffs gerados por IA com a mesma severidade que os feitos por humanos; usar Copilot antes de abrir um PR eliminava boa parte dos ajustes triviais; mas, sobretudo, “a IA não substitui o julgamento humano”, pois as decisões de compromisso (trade-offs) ainda precisam de um engenheiro para avaliar o contexto do projeto. Em resumo, como reforça Williams et al., o objetivo da IA na revisão não é substituir o desenvolvedor, mas assistir, aumentando a eficiência e a qualidade sem demandar tempo excessivo. A IA pode apontar rapidamente um import sobrando ou sugerir correções de segurança, mas não decide sozinha se vale a pena refatorar um módulo inteiro ou alterar uma interface de serviço. Essas decisões envolvem conhecimento de domínio, contexto de negócio e prioridades da equipe, componentes não codificáveis pelos modelos atuais.
Assim, a revisão de código assistida por IA move os gargalos, mas o “merge” final sempre cabe ao desenvolvedor. Plataformas modernas já incorporam isso, como o GitHub Copilot que agiliza o trabalho ao sugerir correções automáticas antes de o revisor humano olhar para o diff. Isso permite que desenvolvedores foquem nos aspectos criativos e complexos, deixando erros triviais para a máquina. Em linha com o espírito agile, a IA liberta tempo para discussões mais estratégicas, mas não elimina a necessidade de debate técnico entre pessoas. Em suma, ferramentas de revisão baseadas em IA ampliam a capacidade de análise de código, mas a responsabilidade e o conhecimento compartilhado continuam sendo mediadas pelo diálogo humano.
Programação em par (pair programming) com IA
No pair programming tradicional, dois engenheiros sentam lado a lado, um codifica (“motorista”) enquanto o outro analisa e questiona (“navegador”). Esse formato intenso de colaboração tem sido elogiado por elevar a qualidade do código e promover transferência de conhecimento mútua. À medida que discutem a solução, eles explicam raciocínios e algoritmos, ajudando-se mutuamente a entender lógicas de domínio ou técnicas específicas. Segundo Welter e Schneider, esse processo gera valiosas oportunidades de aprendizagem: um par pode, por exemplo, descobrir juntos o motivo de um bug ou explorar uma nova estratégia de design, resultando num profundo entendimento construído colaborativamente.
Com a popularização de assistentes de codificação (Copilot, ChatGPT, etc.), surgiu a ideia de “programação em par com IA”, em que um desenvolvedor humano colabora com um agente de IA em vez de outro humano. Isso acelera a escrita de código: a IA pode sugerir funções inteiras a partir de descrições em linguagem natural e indicar padrões de melhor qualidade, deixando o programador humano mais focado em decisões de alto nível. Estudo observaram que modelos de linguagem treinados em vastos repositórios públicos podem oferecer trechos limpos e bem estruturados, servindo quase como um consultor instantâneo de boas práticas. No dia a dia, programadores usam a IA como um “mentor de plantão”: ao solicitar ajuda, veem a IA explicar por que sugere aquele pedaço de código, o que na teoria favorece o aprendizado em tempo real.
Entretanto, essa parceria humano–IA tem riscos. Gopinath (2024) destaca que a empolgação pela IA pode levar à super-dependência: alguns desenvolvedores tendem a aceitar imediatamente o código gerado pelo assistente sem compreender totalmente a lógica subjacente. Esse comportamento faz com que aspectos cruciais passem despercebidos e, quando o código falha, quem entenderá como consertar? Em outras palavras, se o desenvolvedor não questiona a resposta da IA, perde-se o processo reflexivo de “por que funcionou assim?”. Em nosso contexto, isso empobrece o aprendizado individual e coletivo: sem o esforço de debater soluções (como se faria em um pair tradicional), o conhecimento acaba sendo é internalizado. Essa preocupação se reflete no estudo de Welter et al.: embora a frequência de episódios de transferência de conhecimento seja parecida entre pares humanos e pares com IA, os desenvolvedores aceitaram as sugestões do Copilot com muito menos escrutínio crítico do que fariam com um colega humano. Ou seja, mesmo que a informação seja transferida, ela nem sempre é compreendida profundamente.
Além disso, o “lado humano” do pair programming ajuda desenvolvedores juniores a assimilar melhor os fundamentos. Gopinath alerta que a chegada da IA pode deixar os novatos sem as oportunidades básicas de aprendizado que teriam ao trabalhar com um sênior. Em um cenário sem IA, o especialista explica conceitos, enquanto o iniciante faz perguntas e absorve raciocínios. Se a IA substituir o sênior, falta quem contextualize nuances do domínio ou quem corrija mal-entendidos imediatos. A IA pode sugerir uma solução eficiente, mas não compartilha espontaneamente a experiência acumulada da equipe, nem motivará a reflexão via diálogo. Em resumo, a IA nas sessões de pair programming traz benefícios de agilidade e exposição a padrões, mas deve ser usada com cautela: é crucial que os desenvolvedores continuem questionando e conversando, usando a IA como segundo par, mas sem abrir mão do papel de mentor e aprendiz que existe entre colegas.
Documentação, onboarding e outras automações
Além de código, a IA tem sido aplicada à documentação e à integração de novos membros nos times. Ferramentas de linguagem natural podem gerar automaticamente explicações de trechos de código, resumos de arquiteturas ou até guias de API. Isso torna a documentação técnica mais acessível: um desenvolvedor iniciante pode perguntar ao chatbot interno “o que faz este módulo?”, recebendo em segundos uma resposta contextualizada com base no repositório. Segundo Williams, tais sugestões de IA servem como um “pato de borracha” conversacional, orientando os devs de forma consistente com o estilo da equipe.
Na prática, isso acelera o aprendizado no trabalho. Ferramentas de Codex ou GPT podem agir como mentores instantâneos, mostrando padrões de código padronizados ou explicando convenções de nomenclatura adotadas pela equipe. No onboarding, a IA pode personalizar conteúdo para um novo contratado, destacando tópicos-chave do legado do projeto. Essa automação alinha rapidamente o conhecimento básico, permitindo que desenvolvedores juniores subam de nível sem depender exclusivamente do tempo dos colegas sêniores. De fato, pesquisadores apontam que Copilot e similares dão aos novos desenvolvedores sugestões alinhadas à qualidade esperada, reduzindo o fardo de ensinar práticas triviais.
Porém, também aqui vale a analogia: a IA pode indicar o que fazer, mas nem sempre por que. Se novos membros passarem a usar IA para tudo sem discutir o racional, perderão o contexto fornecido por conversas humanas. A documentação gerada automaticamente, embora útil, pode carecer de profundidade (como nuances de arquitetura ou decisões de negócio tomadas anteriormente). Portanto, enquanto a IA agiliza redação de docs e difunde padrões, é essencial manter canais de comunicação ativa, como pares fixos ou mentorias, para explicar o subjacente: o porquê das escolhas. Em outras palavras, a IA enriquece a cultura de engenharia ao automatizar rotinas e democratizar informação, mas deve caminhar ao lado de práticas humanas de revisão e instrução.
Transmissão de conhecimento e diálogo
Um dos ativos mais valiosos de um time de engenharia é seu aprendizado coletivo, o saber compartilhado entre todos. Mecanismos informais como code review, pares e reuniões de planejamento são ocasiões para transmitir conhecimento tácito: aquilo que é difícil de documentar, como “esse módulo foi projetado assim por causa de uma limitação antiga do servidor” ou “usei esse atalho no IDE para agilizar”. Esses detalhes acabam passando de mão em mão por meio de conversas contínuas. Como polêmica, Michael Polanyi já ressaltou que muito do que sabemos é tácito e só se revela no contexto da prática. Em engenharia de software, isso significa que parte do aprendizado vem de perguntas e discussões, não apenas de ler documentação estática.
Quando a IA entra em cena como fonte principal de respostas, corre-se o risco de suprimir esses diálogos. Em vez de perguntar ao colega “como você lidaria com esse bug específico?”, o dev pode simplesmente consultar a IA. Embora a resposta possa resolver o problema imediato, deixa de ocorrer aquela troca de conhecimentos menor, mas cumulativos, que aconteceria em uma conversa. Desta forma, alerta-se para o possível empobrecimento do aprendizado coletivo: se os desenvolvedores se acostumam a confiar cegamente em sugestões de IA, a capacidade de questionar, revisar e assimilar conhecimentos será reduzida.
Diversos estudos confirmam essa dinâmica. Conforme observou Welter et al., as sessões de pair programming tradicional apresentam muitas trocas de perguntas e respostas curtas que simplesmente não ocorrem quando o parceiro é uma IA. Além disso, esses pesquisadores notaram que o “terceiro membro” Copilot, apesar de lembrar desenvolvedores de detalhes importantes, muitas vezes vê suas sugestões acatadas sem questionamento. Esse padrão, de aceitar rapidamente algo que vem do assistente, pode levar a uma confiança acrítica na solução proposta, apagando o desafio do raciocínio conjunto. Em contraste, nos pares humanos, é comum que dúvidas sejam levantadas e que os interlocutores se esforcem para explicar o raciocínio uns aos outros até entenderem mutuamente a solução. Esse tipo de esforço é essencial para aprendizagem profunda: ao reformular conceitos e justificá-los, cada um consolida a própria compreensão.
Por isso, muitas equipes defendem manter espaços de debate técnico que vão além da IA. Revisões de código presenciais ou por vídeo, retrospectivas e discussões de arquitetura são instâncias em que o método socrático ou questionamentos abertos são encorajados. Nessas reuniões, líderes técnicos podem agir como “instrutores socráticos”, fazendo perguntas desafiadoras sobre as decisões de projeto: “Por que escolhemos essa biblioteca? Quais alternativas consideramos e por quê?”. Esse estilo de diálogo não somente identifica pontos frágeis no plano atual, mas também ajuda toda a equipe a entender melhor o porquê das escolhas, muito além do como que a IA pode oferecer.
Em suma, a IA na cultura de engenharia deve ser vista como ferramenta de apoio, e não como substituta do convívio intelectual. O conhecimento adquirido pela equipe é construído em cima de trocas informais: quebrar essas trocas em favor de respostas prontas pode tornar o grupo menos preparado para lidar com situações novas. Assim, mesmo que uma ferramenta de IA gere a solução final de uma tarefa, encoraja-se sempre discutir o resultado com colegas, replicando, em certa medida, o processo socrático de exploração por meio de perguntas críticas. Dessa forma, protege-se o aprendizado coletivo e garante-se que a sabedoria gerada permeie o time.
O método socrático e times modernos
O método socrático, originado nos diálogos de Platão e no ensino de Sócrates, baseia-se em questionamentos sucessivos para estimular o pensamento crítico. Sócrates não fornecia respostas prontas, em vez disso, fazia perguntas abertas sobre premissas e lógica, levando os interlocutores a descobrirem conclusões por si mesmos. Esse processo dialético expõe pressupostos ocultos e aprofunda o entendimento. A educação atual reconhece seus benefícios: usar o método socrático em sala de aula torna os alunos participantes ativos e engajados, ao invés de receptores passivos de informação.
Nos times de engenharia, podemos adotar uma postura similar. Em vez de aceitar a primeira sugestão (seja humana ou gerada por IA), membros experientes podem perguntar: “Como chegamos a essa solução? O que aconteceria se alterássemos X? Existem premissas não discutidas aqui?”. Isso encoraja todos a refletir sobre alternativas, tal como os diálogos socráticos fazem. Em revisão de código, por exemplo, um revisor poderia desafiar “Esse trecho funciona, mas essa arquitetura está escalável a longo prazo?”, ao invés de simplesmente aprovar mudanças triviais. No pair programming, o “navegador” humano cumpriria o papel socrático ao questionar o “motorista”: “Por que decidiu estruturar assim? Você conhece outro jeito?”. O método incentiva o aluno (no nosso caso o desenvolvedor) a formar próprias conclusões ao refletir sobre seus próprios argumentos.
Quando contrastamos com a IA, fica evidente o papel de Sócrates, enquanto a IA pode dar uma resposta fechada, o método socrático fecha a resposta e continua fazendo perguntas. Um time que incorpora o método socrático evita a complacência. Enquanto a IA responde “como fazer”, o humano que pensa como Sócrates pergunta “por quê”. Esse hábito crítico evita armadilhas de ver a IA como uma caixa preta. Mantém-se viva a cultura de questionamento mútuo que fortalece o aprendizado coletivo. Aplicar o método socrático em times modernos significa usar a IA com inteligência: comparar as respostas geradas, levantar hipóteses contrárias e, se necessário, refazer a pergunta para o modelo. Essa atitude garante que, à semelhança de Sócrates fazendo os alunos “lembrar” o conhecimento, os desenvolvedores continuem questionando-se e aprendendo juntos, não apenas consumindo códigos prontos.
Conclusão
A integração da IA na cultura de engenharia traz avanços notáveis, como maior produtividade, melhor cobertura de qualidade e até novas formas de aprendizado no trabalho. Ferramentas como Copilot ou agentes de revisão podem automatizar tarefas repetitivas, padronizar boas práticas e funcionar como assistentes de conhecimento para novos membros. Contudo, o diálogo humano permanece insubstituível. Como mostram os exemplos discutidos, os benefícios reais da IA vêm quando ela coopera com os desenvolvedores, liberando-os para pensar criticamente nos aspectos mais complexos do software.
Por isso, a postura recomendada é tratar a IA como colaboradora, não substituta. O botão de “merge” continuará com o dedo humano, mas todos os esforços anteriores, como revisão de código, pares ou explicações, ganham apoio. Equipes devem aproveitar o que há de melhor em cada lado, deixando que o modelo entregue sugestões rápidas, mas sempre levando suas saídas de volta ao crivo humano através do questionamento socrático. Só assim preservamos a riqueza do aprendizado coletivo, com os desenvolvedores devem aceitando a assistência, mas seguindo perguntando “por que isso está correto?”. Em última análise, a filosofia socrática nos lembra que o valor está no percurso da aprendizagem, não apenas no destino da solução final. Se mantivermos essa visão, a cultura de engenharia moderna combinará criatividade humana e inteligência artificial de forma sinérgica, construindo software melhor e desenvolvedores mais sábios.
Referências
- Gopinath, V. (2024). AI Pair Programming in 2025: The Good, Bad, and Ugly. Builder.io.
- Shwer, E. (2025). Code review in the age of AI: Why developers will always own the merge button. GitHub Blog.
- Welter, A., & Schneider, N. (2025). From Developer Pairs to AI Copilots: A Comparative Study on Knowledge Transfer. arXiv.
- Williams, A. (2024). AI-Driven Code Review: Enhancing Developer Productivity and Code Quality. Communications of the ACM.
- Saint Leo University. (2022). The Socratic Method of Teaching: What It Is, Its Benefits, and Examples. Saint Leo University Blog.
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