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Francis Targanski
Francis Targanski

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Do IoT ao PoT (Prompt of Things): uma nova infraestrutura semântica

O Fim do Dialeto Digital: Interoperabilidade Semântica

No mundo da Internet das Coisas (IoT), dispositivos convergem numa rede heterogênea de sensores e atuadores, todos falando diferentes dialetos digitais, protocolos e comandos proprietários. Como define a cátedra, IoT é “a interconexão digital de objetos cotidianos com a internet”. Em outras palavras, cada dispositivo IoT frequentemente só entende o seu próprio idioma: são comandos numéricos, bits e pacotes de dados que mal codificam intenções humanas. Eu percebo que, como desenvolvedores, voltamo-nos há décadas a padrões de comunicação de baixo nível. Quando programamos um termostato, por exemplo, ele espera apenas um valor inteiro (por exemplo, 22 para 22°C), sem fornecer qualquer contexto. Assim, tratamos os dados como bits crus em vez de ideias ou eventos de domínio. Isso torna até as funções triviais cheias de código prototípico e conversões de unidade manuais. Ao fim, cada sistema mantém sua própria língua técnica, sem um entendimento comum.

De fato, hoje controlamos uma casa inteligente por múltiplas interfaces especializadas: um app para a lâmpada, outro para o termostato, outro para as câmeras, e assim por diante. Cada qual exige comandos exatos em formulários distintos. É como ter atores numa peça de teatro em que cada um canta sua própria melodia, não há um diálogo real possível entre eles.
Práticas como RESTful ou MQTT ajudam em parte, mas ainda assim cada provedor implementa seu dialeto interno, criando ilhas isoladas que só interagem pela camada de rede, não pela semântica das tarefas.

Por outro lado, práticas consolidadas de engenharia de software têm buscado superar esse impasse semântico. No Domain-Driven Design, por exemplo, Eric Evans enfatiza a criação de uma linguagem ubíqua, um vocabulário compartilhado entre desenvolvedores e especialistas de negócio. Essa abordagem alinhava código e domínio do problema, fornecendo uma base de entendimento comum. Porém, no IoT clássico, essa linguagem ubíqua costuma existir apenas dentro de cada sistema fechado, não entre sistemas distintos. Cada fabricante “fala a sua língua”, dificultando a interoperabilidade. A visão do DDD, de unir conceito e código, mal foi alcançada nessa esfera, pois quase não há pontes semânticas. É como permitir que o desenvolvedor pense “temperatura da sala” e já gere código, em vez de traduzir manualmente para registradores e passos binários.

A boa notícia é que tendências mais amplas já apontam para mudanças semânticas profundas. A própria web evolui para suportar uma interconexão de significados: ferramentas de busca e plataformas digitais estão transformando sites em infraestruturas cognitivas, carregadas de metadados semânticos, taxonomias claras e grafos de conhecimento. Ou seja, a Internet não é mais só malha de pacotes, é uma camada de significado. Podemos esperar que o mesmo ocorra com IoT. Padrões como JSON-LD, Schema.org e ontologias maduras começam a tornar dispositivos “legíveis” por agentes e outros sistemas. Em vez de apenas visualizar dados, seremos capazes de interpretá-los em um nível semântico compartilhado.

Do Comando ao Entendimento

Com o avanço das inteligências artificiais e dos grandes modelos de linguagem (LLMs), surge a oportunidade de ir além dos comandos pontuais: podemos alcançar o entendimento real. Assistentes virtuais modernos empregam NLP (processamento de linguagem natural) para interpretar frases humanas. Como já observado em artigos técnicos, “a tecnologia de assistente de voz utiliza inteligência artificial, aprendizado de máquina e processamento de linguagem natural para entender e reagir a comandos falados”. Em vez de rigidez, os sistemas passam a decifrar a intenção por trás das palavras. Assim, um simples “bom dia” pode disparar ações coordenadas, como ajustar luz e cafeteira, ilustrando essa evolução do comando para o diálogo.

O salto de qualidade acontece quando combinamos IoT com esses LLMs. Uma pesquisa recente propõe colocar modelos de linguagem na borda da rede (edge) para que dispositivos respondam a comandos de modo intuitivo. Nesse esquema, o usuário não “soletra” cada passo: basta dizer algo como “prepare o ambiente para assistir a um filme” que o sistema interpreta o pedido. O trabalho de Kalita et al. mostrou exatamente isso em um protótipo: LLMs traduziram comandos amplos como “configurar sala para estudo” em ações simultâneas (luzes, TV, ventilador). O núcleo inteligente orquestra tudo, enquanto cada dispositivo segue instruções ocultas. Em vez de digitar valores ou clicar em múltiplos apps, dizemos o que queremos, e a rede de coisas age.

Além da experiência do usuário, há ganhos arquiteturais. Podemos usar microsserviços e arquitetura orientada a eventos para estruturar o sistema. Por exemplo, um serviço de Gerenciamento de Prompt pode reunir informações de sensores (temperatura, luminosidade, presença) e contexto (histórico de uso ou perfil do residente). Esse módulo de criação de prompt combina dados em tempo real com memórias pregressas para gerar uma consulta precisa ao LLM. Em seguida, outro componente interpreta a resposta do modelo e despacha comandos às portas e atuadores correspondentes. Esse fluxo, da coleta MQTT até a resposta LLM e o acionamento final, mantém os módulos desacoplados e auditáveis. Em termos de software, é um pipeline de dados semânticos, em vez de invocações ponto a ponto.

Um exemplo prático: o usuário pode dizer “configurar ambiente de trabalho”, e o assistente entenderá que isso implica luz branca, temperatura confortável e talvez notificações silenciadas. Tudo isso ocorre sem que o usuário precise detalhar cada etapa. A grande mudança é que o sistema passa a reconhecer intenções complexas, processando-as como eventos de domínio. Em vez de programadores anteciparem todas as combinações possíveis, deixamos o LLM interpretar funções abstratas. É quase um diálogo: ajustamos o prompt e o ambiente se adapta, aprendendo com cada interação.

Na prática, arquitetamos tudo isso com sistemas baseados em eventos e mensageria. Cada dispositivo publica dados e se inscreve em comandos gerais, enquanto o LLM central age como roteador semântico. Podemos usar MQTT, Kafka ou outro broker para transmitir eventos assincronicamente, garantindo tolerância a falhas. Ferramentas de integração contínua e entrega contínua (CI/CD) permanecem cruciais, automatizando testes de regressão até no nível semântico, por exemplo, com simulações que validam fluxos de prompts. Adotar essa disciplina permite iterar rápido e implantar mudanças no “cérebro” do sistema com segurança.

Infraestrutura Semântica e Ontologias

Ao migrar para o modelo PoT (Prompt of Things), estamos basicamente construindo uma nova infraestrutura semântica. Cada dispositivo IoT deixa de ser um mero executor de bits e se torna um ator numa rede de significado. Para isso, padrões e metadados claros são essenciais. Alguns setores já adotaram ontologias padronizadas (como o modelo SAREF na Europa) e frameworks como JSON-LD, RDF ou Schema.org. Esses padrões permitem que sensores publiquem dados com contexto rico: em vez de {"valor":25} num banco, eles oferecem respostas onde cada campo está bem definido. Por exemplo, um sensor de temperatura poderia servir {"nome":"temperatura", "valor":25, "unidade":"°C", "local":"sala"} via API. Assim, qualquer cliente ou agente cognitivo sabe exatamente o que aquele 25 representa sem consulta adicional.

Outro exemplo prático: imagine um sensor de umidade agrícola anunciando suas leituras. Na era IoT tradicional seria apenas um número isolado em um registro. No PoT, o sensor disponibiliza uma API (RESTful ou GraphQL) cuja resposta inclui campos semânticos: nivelUmidade, tipo:"umidade", unidade:"porcentagem", coordenadasGPS, timestamp, etc. Em termos de software, isso se alinha a APIs bem documentadas: podemos usar OpenAPI para descrever as operações e JSON-LD para enriquecer os resultados. Assim, qualquer sistema que leia esses dados já entende o domínio sem código extra. Em suma, cada objeto “fala” usando um vocabulário comum.

Devemos também pensar em armazenamento e inferência de conhecimento. Bancos de dados de grafos serão essenciais para entrelaçar informações. Por exemplo, uma rede de sensores hospitalares pode alimentar um grafo que relaciona pacientes, tratamentos e ambientes. Se um médico pergunta “qual paciente no quarto 202 está instável?”, o sistema do PoT correlaciona dados de sensores cardíacos, ventiladores e prontuários eletrônicos para construir a resposta. Isso lembra métodos clássicos de busca dialética, onde agregamos múltiplas fontes para inferir sentido. Em outras palavras, deixamos de consultar dados brutos para consultar conceitos.

Esse salto semântico é substancial: passamos de mensagens sem contexto para mensagens ensinadas. Como dizia Ferdinand de Saussure, a linguagem humana baseia-se na diferença entre significante e significado, no PoT, as “coisas” aprendem a associar seus dados a significados precisos. Wittgenstein completaria observando que “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, já no PoT, ampliamos esses limites permitindo que a linguagem comum (via prompts) se estenda ao mundo físico. Em última análise, criamos um ambiente onde qualquer termo de domínio tem um lugar no sistema, como se cada palavra abrisse uma porta de entendimento.

Reflexões Finais e o Papel do Desenvolvedor

Essa transição do IoT para o PoT marca um momento quase filosófico na tecnologia: finalmente estamos tratando as máquinas como entidades semânticas, não apenas autômatos mecânicos. Desenvolver na era do PoT é como manter uma conversa com a Casa (ou a Fábrica, a Fazenda, o Hospital), como se eles fossem interlocutores conscientes. Isso exige empatia digital poi precisamos projetar sistemas que ouçam e respondam, perguntando de volta quando incertos. Esse ethos lembra o diálogo socrático, onde refinamos o entendimento por meio de perguntas e respostas, em vez de meramente executar ordens fixas.

No cotidiano do software, aplicamos valores humanos ao projeto. Inspirados por teorias clássicas de arquitetura, vemos agora que qualidade não é apenas performance ou disponibilidade, mas clareza semântica. A arquitetura do sistema deve refletir a lógica do domínio real, conectando entidades por meio de uma linguagem inteligível por todos (usuários, dispositivos, algoritmos). Conforme apontado em estudos sobre a evolução da web, o foco mudou para dar significado aos dados e não apenas transportá-los. Isso se traduz em ter APIs bem estruturadas e metadados acessíveis, de forma que cada requisição traga valor semântico, não somente carga.

Portanto, o desafio para nós, desenvolvedores, é refatorar a infraestrutura existente. Em vez de redes fechadas de APIs, precisamos de hubs interpretativos onde as coisas conversem usando intenções e grafos de conhecimento. Reutilizamos padrões de integração (REST, mensageria, microsserviços), mas enriquecemos tudo com semântica útil. Precisamos também de testes e simulações que validem não só o comportamento tradicional, mas o entendimento. Talvez evoluamos de Test-Driven Development para algo como “Prompt-Driven Development”: definirmos cenários de uso em linguagem natural e garantir que o sistema os atenda corretamente.

Conclusão

O Prompt of Things é a materialização do sonho de uma era digital mais espiritualizada pelo conhecimento. Assim como na Grécia Clássica a palavra e a razão criavam realidades, hoje nossos prompts são a lógica que dá vida ao universo das coisas conectadas. Estamos apenas no início dessa transformação. Quem abraçar cedo padrões semânticos e IA na infraestrutura estará não só acompanhando, mas liderando a próxima onda tecnológica. Afinal, como Heráclito nos ensina, nada é permanente além da própria mudança, e esse fluxo de informação semântica é a essência do que está por vir.

Referências

  • Ericsson. What is semantic interoperability in IoT and why is it important? Ericsson Blog, 2020.
  • IoT For All. The Future of Smart Devices with Natural Language Processing. (s.d.).
  • Xiao, B. et al. Efficient Prompting for LLM-based Generative Internet of Things. arXiv:2406.10382, 2024.
  • Valente, M. T. Domain-Driven Design (DDD): Um Resumo. Engenharia de Software Moderna. (s.d.).
  • Beall, J. L. The Timeless Bridge Between Philosophy and Technology. DEV Community, 2024.

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